A MORTE NA POESIA DE
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE E DE MANUEL BANDEIRA: UMA ANÁLISE DESCRITIVA E
COMPARATIVA.
Claudio de
Lima*
RESUMO
O presente
trabalho tem por objetivo analisar e comparar com atenção especial para “a
morte” na poesia “Desesperança” de Manoel Bandeira, publicado na obra “Cinza
das Horas” em 1917 e “A morte do leiteiro” de Carlos Drummond de Andrade,
publicado na obra A rosa do povo em 1945. Esta análise dos poemas será feita,
observando-se, a partir de elementos formais e temáticos, os aspectos que
remetem à reflexão da existência humana e alguns aspectos pessoais referentes a
cada autor; levará em consideração as características de como cada autor aborda
o tema, se objetivamente ou se subjetivamente. O desenvolvimento da análise consistirá
de uma breve biografia dos autores, observação dentro de parâmetros de
concepção analíticas dos críticos literários, Alfredo Bosi, Antônio Candido e
Sérgio Buarque de Holanda, nas temáticas em epígrafe. Nessa perspectiva também
observaremos os contextos sociais da época da produção dos referidos textos, fazendo
as análises necessárias numa perspectiva comparativa e descritiva, levando em
consideração os aspectos particulares dos autores em relação ao contexto social
ao qual cada um estava inserido e a forma de ver o mundo por cada um deles ao
longo de suas carreiras,.
PALAVRAS-CHAVE:
Morte, subjetividade, objetividade, social.
* Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Graduando
do curso de Letras – Português
1 - INTRODUÇÃO
Para um
melhor entendimento a cerca do trabalho desenvolvido, apresentaremos a seguir a
biografia dos autores Carlos Drummond de Andrade e Manuel Carneiro de
Sousa Bandeira Filho e contextualizá-los-emos no cenário literário modernista
brasileiro:
CARLOS
DRUMMOND DE ANDRADE
Nasceu em Minas Gerais, numa
cidade cuja memória viria a permear parte de sua obra, Itabira. Seus
antepassados, tanto do lado materno como paterno, pertencem a famílias de há
muito tempo estabelecidas no Brasil. Posteriormente, foi estudar em Belo Horizonte,
no Colégio Arnaldo, e em Nova Friburgo com
os jesuítas no Colégio Anchieta. Formado em farmácia pela Universidade Federal de Minas Gerais,
com Emílio
Moura e outros companheiros, fundou "A Revista", para divulgar
o modernismo no
Brasil.
Em 1925, casou-se com Dolores
Dutra de Morais, com quem teve dois filhos, Carlos Flávio, que viveu apenas meia hora (e
a quem é dedicado o poema "O que viveu meia hora", presente em Poesia
completa, Ed. Nova Aguilar, 2002), e Maria Julieta Drummond de Andrade.
No mesmo ano em que publica a
primeira obra poética, "Alguma poesia" (1930), o seu poema
Sentimental é declamado na conferência "Poesia Moderníssima do
Brasil", feita no curso de férias da Faculdade de Letras de Coimbra, pelo
professor da Cadeira de Estudos Brasileiros, Dr. Manoel de Souza Pinto, no contexto
da política de difusão da literatura brasileira nas Universidades Portuguesas.
Durante a maior parte da vida, Drummond foi funcionário público, embora tenha
começado a escrever cedo e prosseguindo até seu falecimento, que se deu em 1987 no Rio de Janeiro, doze
dias após a morte de sua filha. Além de poesia, produziu livros infantis, contos e crônicas. Em 1987, meses
antes de sua morte, a escola de samba Mangueira o homenageou no Carnaval
com o enredo "O Reino das Palavras", sagrando-se campeã do Carnaval
Carioca naquele ano.
"A
obra de Drummond alcança um coeficiente de solidão, que o desprende do próprio
solo da História, levando o leitor a uma atitude livre de referências, ou de
marcas ideológicas, ou prospectivas"
(BOSI, 1994)
”O sentimento,
os acontecimentos, o espetáculo material e espiritual do mundo são tratados
como se o poeta limitasse a registrá-lo, embora faça da maneira
anticonvencional preconizada pelo modernismo”. É assim que Antônio Cândido
observa os traços poéticos presentes na escrita de Carlos Drummond de Andrade. Podemos
observar três momentos da poética de Drummond: o primeiro momento, denominada
de fase irônica ou fase EU > MUNDO; o segundo momento, denominada de fase
social ou fase EU <MUNDO; e o terceiro momento, denominada de fase metafísica
ou de fase EU=MUNDO. É nesse contexto conflituoso que Drummond escreve suas
poesias que refletem essa agitação do ser em relação ao cenário social, uma
inquietude que transpassa a barreira do indivíduo e o meio onde ele está
inserido, atingindo o produto do autor: a arte. A poesia de Drummond é um
retrato do seu descontentamento com o mundo, como eu e com as relações do mundo
e do eu. É possível, então, observar esses conflitos refletidos nas poesias do
autor, que reflete os momentos de valoração pessoal, quer seja no momento de egocentrismo
(1ª fase, irônica), no momento social (2ª fase, do eu) ou no momento de
equilíbrio (3ª fase, metafísica), sóbria. Uma fase que surge com o advento da
maturidade, onde o ser crítico já está carregado de subjetividade e
experiências de mundo.
MANUEL CARNEIRO DE SOUSA BANDEIRA FILHO (MANUEL
BANDEIRA)
Filho
do engenheiro Manuel
Carneiro de Sousa Bandeira e
de sua esposa Francelina Ribeiro, era neto paterno de Antônio
Herculano de Sousa Bandeira,
advogado, professor da Faculdade
de Direito do Recife e
deputado geral na 12ª legislatura. Tendo dois tios reconhecidamente
importantes, sendo um, João
Carneiro de Sousa Bandeira, que
foi advogado, professor de Direito e membro da Academia Brasileira de Letras e o outro, Antônio
Herculano de Sousa Bandeira Filho, que era o irmão mais velho de seu pai e foi advogado, procurador da
coroa, autor de expressiva obra jurídica e foi também Presidente das Províncias
da Paraíba e
de Mato Grosso. Seu avô materno era Antônio José da Costa
Ribeiro, advogado e político, deputado geral na 17ª legislatura. Costa Ribeiro
era o avô citado em Invocação do Mal. Sua casa na rua da União é referida
no poema como "a casa de meu avô".
Esteve
em 1912 na Suíça (Sanatório Clavadel), lá, entrou em contato com a melhor
poesia simbolista e pós-simbolista em língua francesa, fonte da sua linguagem
inicial, como atestam os livros Cinza das
Horas e Carnaval. Fixando-se no Rio estreita amizades com alguns
escritores, que como ele, passariam do ecletismo fin de siècle ao modernismo (Ronald de Carvalho, Álvaro Moreira, Ribeiro
Couto, Graça Aranha, Tristão de Ataíde...) praticando o verso livre e a ironia
crepuscular desde os primeiros versos, Manuel Bandeira foi naturalmente
acolhido pelo grupo da semana como um irmão mais velho (tinha 36 anos em 1922)
e houve que o chamasse “o João Batista do Movimento” ; por sua vez terá
recebido do exemplo de Mário e Oswald de Andrade um impulso para romper as amarras das sua
formação intimista. É o que ocorrerá nos livros experimentais, escritos na fase
heroica do modernismo: ritmo dissoluto e libertinagem. A Biografia de Bandeira
é a história dos seus livros, viveu para as letras e, salvo os anos que
lecionou português no Colégio `Pedro II e Literatura hispano-americana na
Universidade do Brasil, dedicou-se exclusivamente ao ofício de escrever: Cinza das Horas, 1917;
Carnaval, 1919; Poesias (Incl. Ritmos Dissolutos), 1924; Libertinagem, 1930;
Estrela da Manhã, 1936; Mafuá do Malungo, 1948; Opus 10, 1952; Estrela da Vida
Inteira, 1966.
Numa
perspectiva literária Manuel Bandeira é visto como o percussor e referencial do
movimento modernista que deu origem a semana de arte moderna de 1922. Com seu
estilo simples e direto aborda temáticas cotidianas e universais, muitas vezes usando
de um teor satírico recheado de formas e inspiração que a tradição academicista
do início do século XX considerava vulgares. Nesse modelo estilístico, Manuel Bandeira
rompe com as tradições literárias da época, desta feita buscando um
fortalecimento do espirito nacionalista, ruptura com o passado e com os modelos
e de artes anteriores: parnasianismo e o realismo, que estava imbuído o movimento modernista.
É ilusório, aliás, julgar que as preocupações técnicas
sejam opressivas em suas obras. O lirismo de Manuel Bandeira não é produto de
laboratório, mas vem, como toda verdadeira poesia, de fontes íntimas, exigindo,
para realiza-se, condições que não se podem forjar arbitrariamente. Apenas é
forçoso acentuar a simples a simples presença de tais preocupações e o papel que
chegam a assumir em sua obra, surgida, não obstante os influxos simbolistas,
após um contato assíduo com a venerável tradição lírica portuguesa. (CANDIDO,
1980)
É nessa perspectiva que a produção de Manuel Bandeira é caracterizada poeticamente
e situada pela volta ao tempo de infância, centrado num olhar cotidiano e ao
apego a dor e ao sofrimento.
Por fim, após nosso encontro com os autores e
a escolha dos poemas, um de cada autor. Analisar-vos-emos numa perspectiva
comparativa. Será analisada “a morte”, levando em consideração a forma que os
autores abordam-nas, se objetivamente; se subjetivamente; se há um aspecto pessoal
ou social envolvido. Para tais análises identificaremos nos textos os traços
que estejam, objetiva ou subjetivamente, relacionados ao tema. Procuraremos
evidenciar as semelhanças e diferenças entre os dois poetas, buscando destacar
passagens e expressões que reforcem essa análise. Buscaremos aporte nos
escritos de Antônio Candido, Alfredo Bosi e Sérgio Buarque de Holanda para que subsidiem
nas análises aqui propostas.
2. –
DESENVOLVIMENTO
2.1 - A MORTE NA
POESIA “DESESPERANÇA” DE MANUEL BANDEIRA
A poesia “Desesperança”
de Manoel Bandeira é carregada de subjetividade, o autor viaja através de um
cenário nebuloso (em sua obra, o aspecto
biográfico, marcado pela tragédia e tuberculose, é poderoso, constando até em
obras nitidamente modernas, como Libertinagem. Há, ainda, a marca da
melancolia, da paixão pela vida e das imagens brasileiras). É de fácil
percepção, mesmo que pareça que “tudo é preparado para o momento decisivo, tudo
posa como diante de um fotógrafo”. Todavia, “o mundo visível pode fornecer as
imagens que hão de animar a sua poesia, mas essas imagens combinam-se,
justapõe-se, de modo imprevisto, coordenado as vezes por uma faculdade intima cujo
mecanismo pode escapar-nos. E escaparia, não raro ao próprio poeta”. (HOLANDA), Manuel
Bandeira era um poeta que usava o cotidiano e todas as coisas simples da vida
para compor a sua poesia:
“De tudo o que lhe propunha o modernismo foram, assim, as soluções
mais nitidamente libertárias o que lhe apareceu corresponder, ao menos por
algum tempo, à sua forma de expressão poética. Liberdade e objetividade
tornaram-se termos rigorosamente correlatos. Manuel Bandeira jamais se deixou seduzir
muito pelos estetismos, que constituem formas aristocráticas de reclusão,
intoleráveis para que aspira vencer, através da poesia, sua própria reclusão e
seu confinamento.”(HOLANDA, 1980, p. 149)
2.1.1 - Análise
Na
primeira estrofe observamos a fraqueza e a tristeza desvendada através do
texto, pois nesta estrofe o autor consegue ser metafórico e direto ao mesmo
tempo, contudo ele consegue superlativar essa tristeza e angustia quando a
compara ao crepúsculo cinza da manhã que chega, como se cada manhã o torna-se
mais próximo da morte. As dores tomam o eu lírico carregado amargura, pois os
pensamentos o maltrata pelo fato de pensar em cada pensamento, ele fecha a
estrofe ainda enfatizando a dor, mas não somente a dor da alma que se revela
pela possibilidade de um encurtamento de seus dias de vida, entretanto os
versos nos evidenciam uma dor real que por ventura o maltrata fisicamente.
È
possível perceber na segunda estrofe a continuidade do ambiente de morte, mas
não de uma morte que o toma naquele instante, contudo de uma morte que o cerca,
que paira no ar: O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento que dá medo.
Talvez é possível sentir no ar o eu lírico gritando por socorro, pois a solidão
parece o empurrar para mais próximo da morte. É no terceiro verso que se
confirma tal expectativa de temor quando diz que no qr paira mal
pressentimento.
Na
estrofe três é bastante categórica a morte, tratada aqui como a vida que acaba,
astro que apaga e configuração da esterilidade. A reflexão sobre a morte paira
sobre a perspectiva metafórica da natureza que tem seu ciclo, ciclo que se
completa com a esterilidade da morte, morte que esvazia todo o ser. Possível
perceber a busca pelo esvaziamento do eu lírico que se faz através da
libertação da alma posta sobre as linhas da “Desesperança” acrescida pela
esterilidade da morte
Na
estrofe quatro o eu lírico sente-se aprisionado e oprimido pelas dores que
transpassa o limite do suportável, sente-se como se tivesse sendo consumido por
algo sobrenatural, que por fim é revelada pela objetividade da palavra morte. A
morte nesse contexto é algo que o autor tem que quase por certeza, haja vista,
a tuberculose nesse período ser uma doença ainda sem tratamento eficaz,
provavelmente essa incerteza quanto a continuidade de vida, o amedronte e o
traga sobre ele a dor, a incerteza e a angustia retratada em cada verso.
É possível, na quinta estrofe, sentir, pois é
objetivamente descrito, a dor do eu lírico que se confunde às palavras do
autor. Dentro desse contexto de sofrimento, subjetivo ou não, é que ele
demonstra se incomodar com o sentido da vida, percebe quanto mais pensa em
conhecer, mas desconhece-a.
Temos a sensação de que o eu lírico sente-se destoar do mundo em que
está inserido. A dor que é demonstrada nas estrofes anteriores parece tomar uma
dimensão para além do eu, que transpassa barreira do individual, começa ver a
sua dor refletir-se no mundo, sente-se ainda como um estrangeiro: sente que sua
estadia ali é passageira. É isso que sentimos expresso na sexta estrofe.
Na estrofe sete, observa na dimensão social um mundo opaco,
monocromático, hostil. É nessa expectativa que o eu lírico define sua vida como
sem finalidade, propósito ou objetivo, enfim, sem sentido. No ultimo verso, o
eu lírico foca a sua desesperança: como dá sentido a uma vida que projeta
longitude, continuidade.
2.1.2 – Contexto geral
No contexto geral, observamos que a morte na poesia de Manuel Bandeira é
algo que está mais próximo ao eu lírico ou mesmo ao poeta, que acometido de
tuberculose, escreve essa poesia, que à época ainda não havia a comprovada
eficácia de qualquer tratamento para tal enfermidade. Assim, sentimos a subjetiva
presença da morte que o circunda, até por que “Sua poesia não quer ser um
artefato. Exige a presença viva e permanente do autor, não apenas a sombra de
uma inteligência eficaz; nisso denuncia bem sua lírica, no sentido pleno da
palavra” (HOLANDA, p. 155). Não poesia
de Manuel Bandeira é possível a segundo Sérgio Buarque de Holanda, p.146, a
representação clara quanto a própria transitoriedade e fugacidade da
existência, é crendo nessa observação que Holanda faz quanto ao estilo
literário de Manuel Bandeira que trazemos a ideia de subjetividade da morte nos
veros de “Desesperança”.
Quando observamos a expressão “Quando a vida
acabar e, astro apagado,” na terceira estrofe, não podemos deixar de inferir a
aproximação da morte. Fazemos a analogia do entardecer, do por do sol como
astro que apaga e a chegada da noite, que pode ser eterna, como a aproximação
da morte, algo que nos é corroborado por HOLANDA, p.147:
“tanto quanto o ritmo da agua
a correr ou a cair, a noite também encerra um duplo significado simbólico,
podendo ora trazer as ideias de simples repouso, de abrigo, de consolo, de
libertação dos cuidados ou sofrimento da vida presente, ora a de descanso
absoluto e eterno” (1980)
É nessa perspectiva que defendemos a ideia de morte presente na poesia
de Manuel Bandeira, como algo presente subjetivamente na poesia “Desesperança”,
contudo, é presente no eu lírico, como que o circunda, ou seja, como algo
intrínseco ao contexto proximal poético: “de certo que o diálogo entre seu
mundo íntimo e a vida circundante não pode ser definitivamente abolido com a
supressão de uma personagem e a exaltação correspondente da outra” (HOLANDA,
1980).
2.2 – A MORTE NA POESIA “A MORTE DO LEITEIRO” CARLOS
DRUMMOND DE ANDRADE
A morte na
poesia “A morte do leiteiro” de
Carlos Drummond de Andrade, publicada em A rosa do Povo em 1945, será analisada
a partir dos aspectos de uma reflexão existencialista e de uma ótica de como a
Morte está contextualizada neste escrito. Observaremos como este tema se situa
se num contexto de proximidade ou distanciamento da realidade do autor ou de
como ele usa o tema em suma para expor seu posicionamento a respeito da sua
visão do mundo que o circunda. Observaremos até que ponto podemos inferir sobre
“O sentimento, os acontecimentos, o espetáculo
material e espiritual do mundo são tratados como se o poeta limitasse a
registrá-lo, embora faça da maneira anticonvencional preconizada pelo
modernismo”(CANDIDO) e como esses fatores corroboram para uma interpretação
verdadeira e situada de como a morte transita
e se aproxima ou se distancia do autor. De início defendemos o posicionamento
de que a morte tratada e evidenciada na poesia “A morte do leiteiro” de
Drummond, é posta e visualizada de maneira panorâmica, tudo isso baseado na
perspectiva de que Drummond escreve suas poesias refletindo uma agitação do ser
em relação ao cenário social, uma inquietude que transpassa a barreira do
indivíduo e o meio onde ele está inserido, atingindo o produto do autor: a
arte.
2.2.1 – Análise
Na primeira estrofe, inferimos uma visão panorâmica, através da qual o
autor traça um retrato social em que no país há uma escassez não só de leite,
mas que o leite nesse conotação
representa tudo aquilo que
alimenta e nutre o ser, ou seja, toda espécie de suprimento para manutenção da
vida: agua, alimento e moradia. Todavia, nessa estrofe, ainda, observa-se uma
tradição, de certa forma bárbara, de que ladrão se mata com tiro, algo que
perdura até a contemporaneidade. Não podemos deixar de verificar, também, nessa
primeira estrofe, que o ultimo verso desencadeia o que o título prediz, que
será a morte do leiteiro se fazendo em consequência de uma tradição carregada
de selvageria e de descrença na eficácia das leis de um país.
Na segunda estrofe, Drummond descreve de maneira
subjetiva um cenário social mais generalizado na figuração da rotina do
leiteiro, de como as classes sociais menos abastardas precisam acordar mais
cedo para fazer a maquina social funcionar ou ainda de outra ótica, de como o
meio urbano depende incondicionalmente de um bom funcionamento do sistema rural
que prover toda sorte de suprimento para manter a vida nas cidades. É nessa
produção de energia, que não cessa, mas que em nada é valorizado por quem a recebe.
Mas o que é verificado é que não é apenas o leite (produto) que é entregue na
cidade, porém é que é o melhor leite, o melhor produto, todavia, quando o autor
aponta “leite bom para gente ruim”, inferimos que esta conotação dá-se pela não
valoração que o beneficiado por este esforço deixa de atribuir ao
produtor/transportador que não mede nenhum esforço para cumprir sua missão.
Na terceira estrofe, há a descrição do perfil
social e intelectual do leiteiro, que de certa forma descreve um panorama
social dos meados do século 20 de uma larga população agrária, analfabeta e que
reflete a concentração de riqueza. A estrofe começa, nos primeiros quatros
versos, fazendo uma abreviada descrição de como o leiteiro tem seu tempo
comprimido pelas obrigações e que em consequência disso a ignorância o
escraviza naquela conjuntura das relações de poder. Drummond retrata a força de
trabalho no auge dos 21 anos de energia plena, mas que enfatiza a valoração, no
contexto social, apenas da força de trabalho e reflete a cerca da falta de
compreensão de mundo por este ator social.
“Assim o leiteiro fica a sob os domínios e a opressão das classes
dominantes, é apenas um intruso fazendo sua obrigação” (JACOBY).
Na estrofe quatro, há algo
diferente, Drummond adentra no contexto trazendo o eu lírico para caminhar
junto com o leiteiro, isso se observa pela colocação dos verbos na primeira
pessoa do plural, que também trás o leitor para caminhar junto com o leiteiro
nos estreitos becos e isso se faz com ênfase as verbos imperativos, que mesmo
com pressa esse leiteiro faz essa passagem com a delicadeza suficiente para não
fazer barulho e não incomodar aqueles que ainda dormem. É observada, ainda, nos
primeiros versos desta estrofe, a reafirmação da escassez do leite de cada dia,
no trecho “que aspira ao pouco leite”.
Na estrofe cinco, Drummond já volta a posicionar-se panoramicamente na
sua narrativa. Agora, ele passa a demonstrar traços de afetividade ao leiteiro,
ou seja, passa a uma proximidade subjetiva: “meu leiteiro tão sutil”. Passa
ainda a demonstrar, nesta estrofe, todo o zelo pela busca da sutileza em não
fazer barulho, sempre o faz. Descreve todos os obstáculos possíveis na
caminhada do jovem leiteiro e que mesmo com todo aquele esforço há sempre
alguém que acorda. Assim, a batalha diária para entrega do mais puro leite é
repleta de obstáculos e intempéries. Os versos de Drummond no inicio desta
estrofe já nos trás a sensação de leveza que a colocação de colocação de
palavras ditongadas em leiteiro e maneiro logo nas duas primeiras
estrofes.
Já na estrofe seis, Drummond inicia com a conjunção
adversativa “mas”. Segundo COCH (1995:35), “esse operador coloca em oposição
argumentos orientados para conclusões contrárias”, quebrando todo o clima de
sutileza da estrofe anterior, aquele “senhor que comumente acorda resmunga e
torna a dormir” dessa vez não dormiria. Enquanto na estrofe cinco a sensação de
sutiliza e de leveza, nesta estrofe parece comprimir o tempo, isso se verifica
nos versos quatro e cinco: “o revolver da gaveta saltou para a sua mão”. E
nessa compressão de tempo já se ouve tiros e o anúncio da morte do leiteiro.
Podemos verificar a evidenciação da violência social que PEREIRA (2000:244)
apontando que:
Havia na
literatura da época uma tentativa de compreensão de uma realidade social dos
excluídos como a tentativa de reação da classe média urbana às ameaças criadas
pelas crescentes desigualdades sociais: Assalto, sequestro e assassinatos.
Neste aspecto a ficcionalização literária da época pode ser compreendida como
ressimbolização da emergente violenta realidade dos confrontos sociais no
submundo das grandes cidades.
Na continuidade da análise observamos que mais uma
vez há uma aproximação subjetiva do autor/eu lírico com a personagem principal:
“liquidaram meu leiteiro”. A morte do leiteiro ou de uma anônimo, apenas uma
peça na engrenagem social, apenas um ducto condutor de energia, apenas um
desapercebido ser matutino. Quem se importaria? Quem reclamaria seu corpo?
Tivera um plano para o futuro? “era tarde pra saber”.
Na estrofe sete, observa-se mais uma vez a
colocação conjunção adversativa mas, que abre a estrofe e que denota a mudança de
cenário onde um cidadão acreditava está fazendo justiça e se depara com a morte
de um inocente. Há o reflexo da mudança de sentido nos versos 4, 5 e 6: “bala
que mata gatuno também serve para furtar a vida de nosso irmão”, nestes versos
também é possível ver a mais uma vez a materialização do eu lírico no contexto
narrativo. Observamos ainda a fuga do assassino expresso no verso “Quem quiser
que chame médico,/ polícia não bota a mão/neste filho de meu pai”. Dos versos
10 ao 12 é sensível um afastamento de eu lírico e a retratação subjetiva dessa
reação da classe média que PEREIRA (2000:244) reflete em seu escrito, isso se
observa com o trecho “está salva propriedade”,
o que reflete a valoração da coisa em detrimento do ser. E é nessa
perspectiva que a estrofe se encerra com os últimos versos iniciado mais uma
vez com uma conjunção adversativa, prosseguindo com o abandono que o leiteiro
recebeu e em consequência não poder mais exercer sua função, pois já não havia
mais pressa nem mais produtos, já não havia mais tempo.
Na estrofe final,
A garrafa estilhaça representa a o fim, a garrafa poderia apenas ter caído e
derramado o leite, mas estava estilhaçada, sem condição conserto, sem jeito,
sem volta. Avida acabou. O leite que
escorre e se mistura ao sangue, o leite que representa a continuidade e
manutenção da vida e o sangue que ao circular nas veias também representaria
vida, mas que ao jorrar, representa a morte. Ver-se o encontro do liquido da
vida e o da morte. Quem tanto trouxe vida tem sua vida tirada por aquele a quem
tanto alimentou. É o fim. É a morte comtemplada retratada desde sua origem.
2.2.2 – Contexto geral
No contexto
geral observamos que a morte presente na poesia de Carlos Drummond de Andrade é
algo distanciado do eu lírico, pois o autor observa panoramicamente o fato, retratando-o
e descrevendo-o dentro de um contexto crítico social. ”O sentimento, os acontecimentos, o espetáculo
material e espiritual do mundo são tratados como se o poeta limitasse a
registrá-lo, embora faça da maneira anticonvencional preconizada pelo
modernismo”. É assim que Antônio Cândido observa os traços poéticos presentes
na escrita de Carlos Drummond de Andrade.
Podemos ver a
morte aqui retratada na poesia “A morte do leiteiro” como o descontentamento
com o paradigma social, a morte nesse contexto reflete o caminho que o autor
entende que a sociedade, nos moldes apresentado, descamba para um desfecho não
diferente do daquele encontrado pelo leiteiro, não por sua culpa, mas pelas
relações de poder que o circunda e rege o paradigma social vigente. A morte
aqui é vista não de um panorama individual, mas de um panorama social. É dessa
forma que a poesia de Drummond se caracteriza, uma poesia de cunho social que
se reflete também nessa perspectiva sobre o tema analisado na pesquisa: “a
morte”.
3. – CONCLUSÃO
No percurso analítico que traçamos para
encontrar as respostas que pretendíamos, passou não só pelo processo de análise
livre que fizemos, todavia, fora necessário leva em consideração a
características particulares de cada autor, suas características universais e a
escola literária a qual estão inseridos, nesse caso em particular, o
modernismo. Observamos em Carlos Drummond de Andrade a poesia modernista narrativa
e de caráter social onde o autor escreve, no caso de “A morte do leiteiro”, com
uma perspicácia bastante singular. Faz nesta poesia um trajeto de
participatividade evidenciada nos escritos analíticos no corpus do texto, onde
ora o autor/eu lírico está presente, ora está como apenas observador. É desta
forma que Drummond viaja e nos leva com ele por entre as linhas do seu escrito
literário, analogicamente como um mamífero aquático que se alterna entre
mergulhos e respiradas à superfície. Em Manuel Bandeira, poeta que possui um discurso prosaico de um estilo simples e direto.
A poesia “Desesperança” é bem mais carregada de melancolia e de sofrimento, o
eu lírico não deixa o contesto da poesia, está sempre imerso. A condição de enfermidade
vivida pelo escritor parece borbulhar em sua poesia. A morte parece ser algo iminente,
não é possível deixar de notar a nebulosidade que permeia a poesia “Desesperança”,
o próprio título já aponta para essa leitura.
Não fechamos
aqui a uma ortodoxia analítica, as poesias apresentadas podem ter variadas
leituras. Contudo para a finalidade à que nos propomos analisar, elas nos
proporcionaram uma verdadeira viagem entre as linhas de Drummond e Manuel
Bandeira, viagem que nos fez conhecer um pouco mais, e mais de perto, como a
tema morte foi tratado nas poesias em epígrafe.
REFERÊNCIAS:
HOLANDA,
Sergio Buarque de. Trajetória de uma poesia. In, BRAYNER, Sônia (Org.). Manuel
Bandeira. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, Brasília: INL, 1980, p. 142-157 (Coleção
Fortuna Crítica)
ANDRADE,
Carlos Drummond de. A Rosa do Povo. Rio
de Janeiro. Record, 1945.
CANDIDO,
Antônio. Inquietudes na poesia de Drummond. In:_____ Vário escritos. São Paulo:
Duas cidade, 1995
BOSI,
Alfredo. Pré-modernismo e modernismo: Carlos Drummond de Andrade. In:_____História Concisa da Literatura Brasileira. 41ª
Ed. Cultrix. São Paulo. 1994 pp. 344-348
CANDIDO,
Antônio. Inquietudes na poesia de Drummond. In:_____ Vário escritos. São Paulo:
Duas cidades, 1995
BOSI,
Alfredo. Pré-modernismo e modernismo: Manuel Bandeira. In:_____História Concisa da Literatura Brasileira. 41ª
Ed. Cultrix. São Paulo. 1994 pp. 360-364
Disponível
em <<http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade#Biografia>>, acessado em 12/04/2015
JACOBY,
Graziela Inês. Análise do Poema “A morte
do Leiteiro” de Carlos Drummond de Andrade. Revista Ideia do curso de letras Disponível
em <<http://w3.ufsm.br/revistaideias/Artigos%20revista%2017%20em%20PDF/analise%20do%20poema.pdf>> acessado em 15/04/2015
APÊNDICES
1 – DESESPERANÇA – Manuel
Bandeira
Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo.
Como dói um pesar em cada pensamento!
Ah, que penosa lassidão em cada músculo. . .
Como dói um pesar em cada pensamento!
Ah, que penosa lassidão em cada músculo. . .
O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento a
Que dá medo... O ar, parado, incomoda, angustia...
Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento.
Que dá medo... O ar, parado, incomoda, angustia...
Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento.
Assim deverá ser a natureza um dia,
Quando a vida acabar e, astro apagado,
Rodar sobre si mesma estéril e vazia.
Quando a vida acabar e, astro apagado,
Rodar sobre si mesma estéril e vazia.
O demônio sutil das nevroses enterra
A sua agulha de aço em meu crânio doído.
Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra...
A sua agulha de aço em meu crânio doído.
Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra...
Minha respiração se faz como um gemido.
Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo,
Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.
Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo,
Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.
Por onde alongue o meu olhar de moribundo,
Tudo a meus olhos toma um doloroso aspeto:
E erro assim repelido e estrangeiro no mundo.
Tudo a meus olhos toma um doloroso aspeto:
E erro assim repelido e estrangeiro no mundo.
Vejo nele a feição fria de um desafeto.
Temo a monotonia e apreendo a mudança.
Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto...
Temo a monotonia e apreendo a mudança.
Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto...
- Ah, como dói viver quando falta a esperança!
Teresópolis, 1912.
Teresópolis, 1912.
2 – A MORTE DO LEITEIRO – Carlos Drummond de
Andrade
Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo. Há muita sede no país, é preciso entregá-lo cedo. Há no país uma legenda, que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata sai correndo e distribuindo leite bom para gente ruim. Sua lata, suas garrafas e seus sapatos de borracha vão dizendo aos homens no sono que alguém acordou cedinho e veio do último subúrbio trazer o leite mais frio e mais alvo da melhor vaca para todos criarem força na luta brava da cidade.
Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer as coisas que lhe atribuo nem o moço leiteiro ignaro. morador na Rua Namur, empregado no entreposto Com 21 anos de idade, sabe lá o que seja impulso de humana compreensão. E já que tem pressa, o corpo vai deixando à beira das casas uma apenas mercadoria. |
E como a porta dos fundos
também escondesse gente que aspira ao pouco de leite disponível em nosso tempo, avancemos por esse beco, peguemos o corredor, depositemos o litro… Sem fazer barulho, é claro, que barulho nada resolve.
Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve, antes desliza que marcha. É certo que algum rumor sempre se faz: passo errado, vaso de flor no caminho, cão latindo por princípio, ou um gato quizilento. E há sempre um senhor que acorda, resmunga e torna a dormir.
Mas este entrou em pânico
(ladrões infestam o bairro), não quis saber de mais nada. O revólver da gaveta saltou para sua mão. Ladrão? se pega com tiro. Os tiros na madrugada liquidaram meu leiteiro. Se era noivo, se era virgem, se era alegre, se era bom, não sei, é tarde para saber. |
Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua. Meu Deus, matei um inocente. Bala que mata gatuno também serve pra furtar a vida de nosso irmão. Quem quiser que chame médico, polícia não bota a mão neste filho de meu pai. Está salva a propriedade. A noite geral prossegue, a manhã custa a chegar, mas o leiteiro estatelado, ao relento, perdeu a pressa que tinha.
Da garrafa estilhaçada.
no ladrilho já sereno escorre uma coisa espessa que é leite, sangue… não sei Por entre objetos confusos, mal redimidos da noite, duas cores se procuram, suavemente se tocam, amorosamente se enlaçam, formando um terceiro tom a que chamamos aurora. |